
NUM destes dias fui questionado pela minha neta, passeando no Jardim Manuel Bivar, que me pergunta: Que desenho é aquele, em pedra branca e negra, tão bonito e tão grande no meio do jardim? Perante a curiosidade da garota tive que fazer uma viagem no tempo. E contei: Tudo começou lá para os anos pretéritos de 1916/17, quando Faro ficou conhecida e discutida pelos poetas, escritores e artistas plásticos, como cidade acolhedora do “Futurismo”. Que não tendo por Lisboa imprensa que os apoiasse no movimento artístico de Marinetti, que se discutia por toda a Europa, o senhor Fernando Pessoa entrou em contacto com dois farenses: um, já muito reconhecido, pela sua acção pedagógica, como professor na escola de desenho e artes, “Pedro Nunes”, que se criara em Faro, no último quartel do século XIX, ainda como pintor e jornalista que foi o senhor Augusto Lyster Franco. E, por demais, director do jornal “O Heraldo”,
Ainda outro farense, apesar de muito jovem, já tinha passado por Paris, na época, o centro da cultura europeia, que foi o pintor Carlos Porfírio. Assim sendo, o poeta da “Mensagem” contou com esses farenses para que o citado jornal publicasse os trabalhos inseridos nesse movimento que, por Lisboa, a intelectualidade não estava muito compreensiva, ao chamado “Movimento Futurismo”. E durante os anos de 1916/1917, apesar da guerra que se alastrara por todo o continente europeu, as artes e os homens que a desenvolviam, estavam atentes em Faro. Assim, pela nossa cidade, chegavam ao “ Heraldo”, pelo correio, trabalhos escritos de homens e mulheres da cultura poética, artistas de todo o País, em textos futuristas, iniciando-se a publicação a 5 de Novembro de 1916, a Julho de 1917.

Uma interrupção da pequena Viviana que faz as contas: Então, avô, já há quase um século passado! Sim, e obrigado pela tua fresquidão de pensamento. Pois há, justamente, 81 anos que o acontecimento se deu aqui, na nossa cidade de Faro. Mas há mais para contar. Se não te importas! Oh, Avozinho, que ideia! Mas antes explica-me o que é isso de “Futurismo”, que eu nunca ouvi falar. Minha filha, mais tarde explicar-te-ei essa urgência de um ensino mais abrangente ao regional. Mas, por agora, só uma breve explicação do porquê da palavra futurismo, que nada mais é que entrar numa nova era, uma corrente artística inspirada pelo ritmo veloz do mundo contemporâneo que a máquina transformou e que o século XX iniciava. Repara que estávamos no início da aviação, do automóvel, do cinema, da electrificação, etc. Entendeste o sentido da palavra como se iniciou a velocidade? Mas quero dizer-te ainda, sem explicação, que ficará adiada para o teu crescimento: que o início do Futurismo, iniciado pelo italiano Marinetti e apoiado pelo português Santa Rita Pintor, não seria o “meu” futurismo, porque era extremista, destruidor, avassalador. Fernando Pessoa não o aceitou logo, deixou essa responsabilidade para o seu heterónimo, o “algarvio” Álvaro de Campos no Ultimatum (1917). É complicado para ti, mas lá chegarás! Sim…sim… avozinho, chegará, como dizes, o meu tempo do saber! Então vamos em continuação, observar o trabalho de pedreiros. Uma NAU PRETA, um admirável painel negro, de pedra basalto, desenhado no centro do jardim, Façamos uma interrupção para melhor entender as razões dessa NAU que se expõe desde 1932, no Passeio Público de Faro, ainda hoje, num belo basalto negro, com 10X10 metros. A minha neta parece muito entusiasmada pela narrativa histórica dessa NAU. E logo recomeça: Conta, avozinho, quero levar, para a minha escola, esse conhecimento (Escola Afonso III). Sentámo-nos num banco para a continuidade da conversa (para não ficarmos embasbacados no meio do jardim, diz-me a garota) E eu recomeço: O autor do célebre “Orpheu” (Pessoa) veio a Faro, em fins dos anos vinte, como seria frequente o poeta viajar até ao Sul, terra da sua admiração. E dos seus avós paternos. Tanto que escolheu a cidade de Tavira como cidade de nascimento de um dos seus heterónimos, o Álvaro de Campos, (Pessoa morreria em 1935). Pára, Avozinho, que agora perdi-me. É que eu não sei, nem bem nem mal, o que é isso de heterónimos; como sabes entrei para o quinto ano escolar. Podes explicar? Certamente, e como dizes ainda não é o teu tempo desse saber, mas… Mas o saber não ocupa lugar, como costumas dizer… Se eu te dissesse que é entrar no campo da neurologia, em que neurologistas, ainda hoje, nos dão explicações como o nosso cérebro funciona, desde o austríaco Max Nordau ao italiano Lombroso, que explicavam que os heterónimos são a multiplicação de uma mente em várias. Ou seja, uma pessoa em várias “pessoas” Como o nosso e, actual António Damásio, vem noutros detalhes muito próximos, chamando-lhe uma degenerescência. Entendeste? Que palavrão, avozinho! Não será oportuno para o teu jovem cérebro, mas lá fica para um desenvolvimento futuro. Certo? OK, avozinho! Mas continua que logo lá chegarei. Mas vamos ao que nos moveu, a Nau: Como dizia, Fernando Pessoa veio ao convite de pintor Augusto Lyster Franco. Estiveram no Aliança, avozinho? Atira-me a minha neta. Certamente, respondi, O Café Aliança foi nos dois anos 1916/17, e nessa continuidade o espaço privilegiado dos “Futuristas” e de outros acontecimentos que se foram sucedendo, acrescentei. Conta avozinho, conta! Talvez gostes de saber que Fernando António Nogueira de Seabra Pessoa tinha raízes em Faro. A sua bisavó, Joana Xavier Pereira de Araújo e Sousa, era natural de Faro, e o seu bisavô, era um médico, de nome Daniel Pessoa e Cunha, natural de Tavira, que aqui, em Faro casaram e constituíram família. Mas, avozinho, por quê “Pessoa”, esse nome estranho? Essa tua pergunta merece uma explicação, antes de entrarmos na história da NAU. Então, muito breve, para o teu conhecimento: O termo Pessoa, tal como personagem, deriva de persona, que por sua vez vem do grego que significa máscara. É complicado mas parece que entendi, avô. Também não é nenhum bicho de sete cabeças. Não é avozinho. Mas custamos chegar à NAU! Certamente, por isso continuemos. Em Portugal há várias famílias com apelido Pessoa, não havendo necessariamente relação entre elas. Nesse encontro, em Faro, em que o pintor Augusto Lyster Franco convidou o seu amigo Fernando Pessoa para lhe pedir autorização em utilizar o seu poema “Casa Branca Nau Preta”, que fora publicado em 1917, no seu jornal O Heraldo, como modelo para a Nau que desejava criar em pedra para o jardim de Faro. Como sabes dessas coisas todas, avozinho? Lá teremos que interromper a narrativa da NAU, mais uma vez… Mas tudo tem uma explicação. E ela aí vai. Eu fui colaborador de um outro jornal de Faro, “Correio do Sul” (1960), cujo director era filho desse pintor Augusto Lyster Franco, de nome Mário Lyster Franco Pois bem, a 3 de Fevereiro de 1978, o dito Mário dá-me uma entrevista par um “Dossier Universidade do Algarve” que se publicava no “Jornal do Algarve”. Daí veio a informação fidedigna, do encontro dos dois amigos, em Faro, e a autorização para que no jardim de Faro, em 1932, se ilustrasse com a NAU PRETA. Tenho que acrescentar que esse senhor Mário Lyster Franco foi no início dos anos trinta do século passado, presidente da Câmara Municipal de Faro e ele mesmo convidou o pai (pintor Augusto Lyster Franco) para que desenhasse toda a ilustração do chão do jardim Manuel Bivar, que na época era de terra batida. Avozinho, desculpa a interrupção. Como tinhas tempo, trabalhando no estrangeiro e toda essa actividade em Faro? É natural a tua curiosidade…Mas lá vai a explicação ao teu interesse: Para que nos servem os aviões!? Um prolongado fim de semana de três dias e duas horas para cada viagem. E Voilá! O motivo era eu ter a possibilidade de vir e ir em tempo reduzido, de me ter sido dado esse conhecimento, entre outros. Sabes avô, tudo isso é importante para conhecermos a cidade. E para mim! Teremos de terminar esta lição da NAU. Mas gostaria que me desses a tua apreciação sobre a ilustração que o sr. Lyster Franco fez do poema de do poeta Fernando Pessoa um admirável painel em basalto negro e que deve ser divulgado pelas autoridades competentes E que autoridade é essa que manda nessas coisas? Sobretudo, a Câmara Municipal de Faro, o Pelouro da Cultura, etc.
Bem, avozinho…o que me pedes é difícil… mas serei franca: a NAU é um barco à solta. As velas estão, como dizer… livres como todo o barco…Mas não deixam de ser um só. É o sentido do movimento para o futuro. Não é avô?
É isso, minha netinha. Agora toma atenção ao que digo. O pintor Augusto Lyster Franco não deixou de criar uma peça “futurista”, ponde tudo solto, em movimento, que hoje é o único testemunho vivo, desse movimento por Faro entre 1916/17. E, sem dúvida, o artista – pintor não quis deixar, esse tempo, no esquecimento. Avô, sabes o poema de Pessoa passado a pedra? Pois sei! Eu digo-te em brevidade esse poema inédito que foi publicado no Heraldo, pelo criador dos heterónimos que confundem, ainda hoje. Então a leitura do poema é esta, em resumo: A CASA BRANCA NAU PRETA- Estou reclinado na poltrona, é tarde, o verão apagou-se… / Nem sonho ,nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro… / Não existe amanhã para o meu torpor nesta hora… / Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim…
É complicado, avozinho, mas eu irei entender. Tal como eu entendi, verás! Que o tempo e a escola ensinar-te-ão.
Avozinho, agora que me deste a descoberta da nau, vou viajar nela… E como é que eu tenha passado sobre estas lindas pedras e não tenha reparado nesta Nau, que navega!…
Não serás só tu, minha filha. Quantos filhos de Faro nela repararam?… Melhor…. Nunca viram a NAU PRETA, A SEUS PÉS!