Padre Miguel Neto

Jesus (João 8, 1-12) pregava em Jerusalém, no templo, onde se reuniu uma multidão à sua volta. Era manhã cedo e o Senhor, provavelmente sentado num local onde o poderiam ver e escutar, é confrontado com a seguinte situação: os Fariseus, um grupo de judeus devotos e que levavam a Torá1 à letra, apresentam-lhe uma mulher e dizem-lhe que a mesma foi surpreendida em adultério. De pé e imagino que em situação plenamente desconfortável – imaginem-se num julgamento em praça pública… – escuta os acusadores: «Mestre, esta mulher foi surpreendida em ato de adultério e na lei nos mandou Moisés que as tais sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes?». Diz o texto sagrado que Jesus não respondeu logo, já que certamente terá percebido que a situação era uma espécie de armadilha para O apanhar em contradição e em desrespeito pela Lei. Mas como insistiam, Ele, em voz que certamente foi suave, mas cheia de autoridade, daquela autoridade que só a verdadeira justiça tem, disse: «Aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire a pedra contra ela». E aqui a história ganha verdadeira dimensão e expressão e é essa a minha reflexão de hoje.

Todos os que apresentaram a mulher adúltera a julgamento perscrutaram o seu coração, diante da pergunta do Senhor. Maus ou bons, generosos ou avaros, tristes ou felizes, cumpridores da Lei ou não, entraram dentro dos seus corações e das suas consciências e entenderam a sua fragilidade, as suas limitações e imperfeições. Viram-se na verdadeira condição que partilham todos os homens e mulheres: a humanidade.  Quer fosse porque entenderam que o conjunto dos homens partilha a mesma natureza, quer fosse porque essa natureza nos faz entender o que é a bondade, a benevolência, a compaixão, recuaram. «Saíram um a um, a começar pelos mais velhos até aos últimos; ficou só Jesus e a mulher que estava no meio», diz a Bíblia. Não foram capazes de a matar, de a diminuir mais.

Souberam, no mais profundo de si mesmos que não poderiam levantar um dedo para acusar, quando todos eles tinham os seus telhados de vidro e nunca poderiam assumir-se como seres perfeitos, pois essa condição só a Deus pertence. Somos, todos nós, falíveis. Ninguém é completamente puro. Todos somos pecadores. E o único que poderia ter pegado na pedra, não o fez. Ali permaneceu, sentado, escrevendo na terra, tranquilo e manso, pondo em marcha um processo que desencadeou nos acusadores uma nova consciência e na mulher adúltera um sentimento de verdadeiro arrependimento, um sentido novo de vida, porque a salvação estava ali, diante dela, no Amor do Senhor, que tudo vê, tudo sabe, tudo perdoa: «Ninguém te condenou? (…): Nem eu também te condeno; vai-te, e não peques mais».

E é esta a verdadeira essência da justiça: não condenar para destruir o pecador; admitir e censurar as falhas, para que o prevaricador assuma a condição de ser limitado, se arrependa e possa, ele mesmo, encontrar um novo caminho. Para que possa encontrar a esperança do perdão e da salvação.

Esta história, que sim, está escrita na Bíblia e pode ser citada por todos – até por juízes desembargadores da Relação do Porto -, não revela um Deus retrógrado, vingativo, sexista, discriminador. Jesus poderia ter dito, com facilidade, se quisesse agradar aos Fariseus, que «uma mulher que cometa o adultério é uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral. Enfim, carece de probidade moral», que «o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem», mas não o fez, até porque estou certo que aos Seus olhos mulheres e homens tinham igual valor e dignidade, ou igual capacidade de pecar. Aliás, a própria Torá1, ao mencionar os castigos para os adúlteros, referia-se à morte de homens e mulheres…

Poderia ter dado penas suspensas de prisão por violência a todos os que carregaram, em fúria (entre eles, provavelmente o marido traído) aquela mulher, que se calhar a agrediram, até mesmo com uma moca com pregos… Poderia ter considerado pouco relevantes a perseguição, os insultos, o sequestro do amante… Mas Jesus a todos desafiou e questionou, impondo a cada um, um verdadeiro exame de consciência e proporcionando a mudança, escolha individual de quantos O escutaram.

Na vida real, nesta história da atualidade que nos tem acompanhado nos últimos dias, quem foi o verdadeiro pecador?… O Juiz que não cumpriu a lei e se desculpou com a Bíblia para disfarçar o seu orgulho machista, espelhado numa sentença anacrónica e pouco humana, ou a mulher adúltera, que certamente não voltará a cometer tal pecado que tanta amargura lhe trouxe e que viu a sua honra e dignidade – porque os pecadores, sejam homens ou mulheres, também os têm – feridos?… Quem é o maior cego: a justiça que tapa os olhos para não favorecer ninguém, ou o Juiz que se julga sem pecados e acima de todos os cidadãos, invocando a Palavra Sagrada sem perceber que tudo se resume ao Amor e ao respeito pelo próximo, até mesmo a lei dos homens?

A história da mulher adúltera acaba com Jesus a dirigir-se de novo à multidão que esperava os seus ensinamentos: «Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida». É o que desejo: que a Luz chegue a todos os que neste caso triste e infeliz estão diretamente envolvidos e que a nós, que o acompanhamos, nos abra os olhos, para que possamos ser mais generosos e mais solidários, pois é isso que faz verdadeiramente nascer uma sociedade justa.

1A Torá não é mais que o Pentateuco, ou seja, os primeiros cinco livros da Bíblia (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio). São o texto central do judaísmo.

2Cf. Deuteronómio 22,22 e Levítico 20, 10.