
O presidente do Conselho Pontifício para a Família alertou no Algarve que o individualismo da cultura contemporânea já “invadiu o campo da fé”, facto que se constata na existência de “duas doenças”, o “familismo” e o “paroquialismo”, ambas provocadas pelo fechamento, tanto de famílias como de paróquias, sobre si mesmas.
D. Vincenzo Paglia apresentou uma reflexão sob o tema “A Vocação e a Missão da Família na Igreja e no Mundo Contemporâneo” nas jornadas de atualização do clero das dioceses do sul (Algarve, Beja, Évora e Setúbal) que decorreram desde a passada segunda-feira até ontem em Albufeira, subordinadas ao tema “Família: Centralidade, Renovação e Continuidade”.
Na formação, que contou com cerca de 120 padres e diáconos das quatro dioceses, para além dos seus cinco bispos, e que teve como pano de fundo o último Sínodo dos Bispos realizado sobre a realidade familiar, o arcebispo italiano considerou que o “individualismo religioso”, de que as «doenças» diagnosticadas são sinal, “tornou-se cúmplice do individualismo da cultura contemporânea que está envenenando toda a humanidade”.
Lamentando o “familismo” e o “paroquialismo” que “retiram ao Evangelho o seu poder de mudança”, o conferencista lembrou acerca do primeiro que “não é a família, como tal, que salva”, mas Jesus e considerou que o segundo “faz com que a paróquia seja mais uma organização do que uma fraternidade, mais um corpo funcional do que uma família, mais um lugar onde se oferecem serviços do que um lar hospitaleiro”. “Hoje, infelizmente, vemos uma grande brecha entre a família e a paróquia: as famílias são muito pouco eclesiais, já que se voltam facilmente para si mesmas e as paróquias são pouco familiares porque se encontram abafadas com o peso da burocracia ou envelhecidas pelo funcionalismo. Há pouco calor, pouco acolhimento, pouco acompanhamento”, lamentou.
Neste sentido, D. Vincenzo Paglia considerou “emblemática” a “pobreza da preparação dos jovens para o casamento”. “São momentos breves, quase como os cursos de inglês para sobreviver. E quão grande é o abandono a que estão sujeitos os jovens casais pela comunidade paroquial. Estas jovens famílias encontram-se sozinhas para enfrentar os problemas”, criticou.
O presidente do Conselho Pontifício para a Família disse ser “urgente” passar do “familismo” para o “seguimento de Jesus”. “A primeira tarefa da família como sujeito evangelizador é seguir o evangelho”, evidenciou, acrescentando ser “urgente recuperar a profecia do evangelho da família” porque “uma família que vive o seguimento de Jesus não está isolada nem fechada em si mesma”. “No cenário de um mundo marcado pela tecnocracia económica e pela subordinação da ética à lógica do lucro, é estratégico voltar a apresentar o evangelho da família como uma força do humanismo”, defendeu, considerando a família cristã “uma profecia de amor num mundo de solitários”.
“É isto o que devemos redescobrir e viver com o entusiasmo dos que recebem uma grande tarefa de Deus na história humana”, evidenciou, acrescentando que “não basta repetir as fórmulas, muito menos continuar acusando aqueles que pensam de modo diferente”. “Pelo contrário, temos de deixar de nos ferir pelo empobrecimento de uma sociedade que está a perder a beleza e a força do matrimónio e da família”, prosseguiu, lembrando que para “dar solidez à sociedade é necessário fazê-lo a partir da família”.

Às paróquias recomendou que passem “do funcionalismo à familiaridade”. “A comunidade cristã deve fazer a sua parte, ou seja, deixar uma relação demasiado administrativa e funcional”, aconselhou, considerando que “a família e a paróquia têm que realizar o «milagre» de uma vida mais familiar para poder desfrutar o amor evangélico e servir toda a sociedade”. “O Sínodo seguiu esta direção, ou seja, a necessidade de mais família na Igreja e na sociedade”, contou.
D. Vincenzo Paglia destacou que “as características da «familiaridade» são um grande desafio diante do anonimato e do individualismo das sociedades contemporâneas e de grandes áreas metropolitanas”, considerando que “as comunidades cristãs são chamadas a uma grande tarefa: prosseguindo em si mesmas os desafios da família devem ser fermento de fraternidade para os povos”.
Neste sentido, o orador defendeu a criação, também nas paróquias, de uma “nova cultura de família” que restabeleça a família como “nexo vital entre a felicidade privada e a felicidade pública” para que a “sociedade globalizada” encontre um “futuro firme de civilização”. Lamentando que muitos governos não tenham uma política defensora das famílias, D. Vincenzo Paglia aludiu à “necessidade de restaurar a dignidade cultural e a centralidade social da família”, considerando que esta “tem de ser ressituada no centro do debate, no centro da visão política e da própria economia, assim como na vida das comunidades cristãs”.
O conferencista disse ser “urgente” e “indispensável” “encontrar uma nova aliança entre a família e a paróquia” para “derrotar tanto o «familismo» como o «paroquialismo»”. “Família e comunidade cristã precisam de encontrar uma aliança, não com o fim de se fechar no seu círculo, mas para que fermente de forma «familiar» toda a sociedade”, afirmou, considerando a família como “uma das pedras angulares do novo humanismo” que todos são convidados a “imaginar e construir” no início deste novo milénio. “A paróquia com as famílias deve ser uma presença que destaca a beleza de um novo modo de viver, não fechada em si mesma, mas aberta a todos e especialmente aos pobres”, afirmou D. Vincenzo Paglia, considerando ser nesta perspetiva, que se levanta a questão dos “divorciados recasados ou das famílias imperfeitas ou feridas” que disse não se resolver com a imposição de leis ou regras. “Temos de apressar o nosso passo na sua direção, robustecer a nossa escuta, intensificar a nossa companhia”, exortou, defendendo sobre a questão da comunhão aos recasados que “o primeiro corpo de Cristo de que se devem alimentar é da comunidade”.
O presidente do Conselho Pontifício para a Família disse ainda ser necessário repensar a Pastoral Familiar para todas as idades da vida, incluindo, desde logo, a reformulação da iniciação cristã. “É impossivel continuar a viver apenas preparação dos sacramentos numa sociedade secularizada”, considerou.
A atualização do clero da Província Eclesiástica do Sul (este ano alargado ao clero da Diocese de Setúbal), voltou a ser promovida, pelo nono ano consecutivo, pelo Instituto Superior de Teologia de Évora e contou com a participação de diversos oradores convidados que abordaram a questão familiar nas mais diversas áreas.