Em homenagem a todos os mineiros
no Mundo. Pela coragem em resistir
e pela força da própria fé que os une
em esperança.

SÁBADO, 1 de Dezembro de 2001, guardo a recordação da última procissão que assisti, na cidade dos mineiros, Saint-Etienne. Os antigos mineiros festejavam a sua padroeira, Santa Bárbara.

Guardei, no meu diário, toda essa festa única, em que milhares de pessoas, os chamados Stephanois, que são os naturais dessa antiquíssima cidade de origem romana, a Furiana, transportando o andor, desde a colina, onde se ergue a pequena basílica em honra da sacrificada Bárbara.

Assim começa a história narrada e que vem do século III. Diosoro, importante personagem de Nicomédia, pagão romano, quando teve conhecimento que a sua jovem e bela filha, de nome Bárbara, abraçou o cristianismo, de imediato entregou-a aos tribunais, que a condenaram à decapitação. Estávamos no ano de 235. Logo, Diosoro foi fulminado por um raio. Foi o milagre que, ao longo dos séculos seguintes honraram Bárbara sacrificada, padroeira dos mineiros, entre outros que vivem, em trabalhos, os perigos das detonações.

Quando, em 1744, os primeiros mineiros da cidade, capital de La Loire, foram ao fundo do primeiro poço Couriot, e que dera à cidade o exórdio de Ville Noire. (Cidade Negra), não mais se me apagou essa manifestação de fé ao perigo.

E, nessa noite de 1.º de Dezembro, milhares de cidadãos: mineiros, familiares, parentes, amigos, uma mistura de gentes, que levaram a Alma ao fundo de toda aquela mundo, vindo de todas as partes dos continentes europeu e africano, buscando o viver de toupeiras, no fundo das minas de Saint-Etienne. Assim foi durante séculos, naquela cidade negra, emoldurada do verde das florestas, a uma altitude de 600 metros.

Sete colinas tem a cidade e a de Santa Bárbara fica ao centro do burgo, perto da Grand-Église, assim chamada de grande Igreja por ter sido a primeira catedral, construída no início do século XV, hoje, na zona histórica da cidade, que vem descendo à Place du Peuple (Praça do Povo), a grande encruzilhada (uma Étoile) que nos encaminha por toda os destinos da cidade.

A procissão vem descendo da colina de Santa Bárbara, passa pela zona histórica, para atingir o centro, capital de uma grande metrópole de mais de um milhão de habitantes. O andor é conduzido por grupos de velhos mineiros, em que os filhos e netos lhes seguem. Três Filarmónicas dos bairros dos mineiros, como Terrenoire, Côte-Chaude, por último a Filarmónica de Saint-Etienne, recebem Santa Bárbara, e o longo cortejo de mineiros reformados, ostentando os seus capacetes de lanterna acesa, atinge a Praça do Povo. Milhares de pessoas invadem os percursos por onde Santa Bárbara passará no seu andor sem flores, sem adornos, na singeleza própria e rigorosa das vidas dos homens que descem às profundidades da terra, em busca das riquezas minerais, em que neles são os menos repartidos.

A multidão, ordeira e silenciosa, como se descesse na angústia para as profundidades, segue o cortejo até à majestosa praça da Câmara Municipal, onde se erguem, ao cimo do extenso escadório, donde se empinam as colossais estátuas que simbolizam o trabalho nas artes: mineiros e metalurgia.

O cortejo sobe a rua Michel Rondet a caminho do Clapier, local assim baptizado por ser o último reduto dos poços que desciam ao fundo da terra. Nesse local se ergue um imenso Vulcão de cinzas, as excreções retiradas e acumuladas, durante mais de dois séculos, e que formam o testemunho maior dos tempos das minas, onde a neve não tem lugar, pela elevada temperatura, que a imensa montanha, ainda em 2001, expulsava vapores de fumo. Hoje recordo essa panorâmica que admirava do meu sexto andar, admirando, enquanto a neve caia, a montanha do Clapier repelindo a neve, mas recebendo as manchas verdes de flogistos, nessa sensação de calor e de luz.

Acompanho a longa e silenciosa procissão dos mineiros. Esta já é a cidade dos meus primeiros filhos. A minha cidade de trabalho e da transmissão dos conhecimentos aos mais jovens. O calor humano dá-nos o calor ao frio que sobra, ao longo da imensa rua. Só a música do seu natural compositor, Massenet, se ouve em surdina, marcando o compasso.

Chegados ao Clapier, enfim, nesse ambiente, não só de religiosidade, também de calorosa fraternidade, o andor de Santa Bárbara é preparado para descer ao fundo do poço, onde começa o Museu das Minas. Só os Mineiros têm esse privilégio de acompanhar a sua patrona. A foule (multidão) imensa aplaude e acena em lenços negros a homenagem prestada a todos os toupeiros que não regressaram do fundo dos abismos.

Depois, retomado o ambiente de festa, onde todas as opiniões políticas se confundem e se respeitam, surge no céu, nessa constância de negridão, o último acto pirotécnico dessa soirée única: um fogo de artifício tratado com magnificência de luzes, de poeiras, em grande respeito ao labor desses pioneiros, ao ponto de nos convencer como Stendhal: “la beauté n’est que la promesse du bonheur” – a beleza não é mais que a promessa da felicidade .

É no início dos anos oitenta do último século que a exploração total das minas termina. Os Stéphanois guardam, dessa indústria, uma recordação nostálgica dessas centenas de anos de mina intensiva. Mas essa recordação não pode apagar os 3.000 mortos au fond dos poços, só durante o século XIX, sem contar com os que vão, até aos anos oitenta do século XX. Contemos ainda as doenças resultantes da silicose, acidentes de trabalho, etc.

Recordar essa noite, do primeiro ano do século XXI, em que Santa Bárbara os levou, levada, em homenagem pelo sacrifício nas esperanças, ao último poço que restava, foi uma vitória conquistada dos mineiros da cidade negra.