Há uma tendência natural para interpretarmos o termo “coragem”, exclusivamente, como algo que é feito com grande heroicidade, e que desagua em sucesso, independentemente das acções ou atitudes tomadas por alguém. Não se trata de uma interpretação errónea, mas, a meu ver, é limitada, ou incompleta.
Coragem, segundo uma definição encontrada no dicionário, é “a firmeza de ânimo ante o perigo, os reveses, os sofrimentos”. Mas também é a “constância, perseverança”, termos cruciais para uma compreensão mais lata do termo, e quase sempre esquecidos.
Ter coragem é avançar num projecto, numa decisão, numa ideia ou numa escolha, mesmo que aqueles que nos rodeiam, desconfiem do sucesso dessa empreitada, julgando-nos com sonhos megalómanos, porque julgam ter a certeza de que o passo que iremos dar, será maior do que a perna. São muitas as vezes em que tal sucede, porque o medo dos que olham de fora é muito superior ao nosso, fazendo com que eles prefiram a comodidade ao risco da aventura, da mudança de paradigma. Aquele que arrisca e rompe com padrões instituídos, é não raras vezes, olhado com desconfiança, sendo-lhe rapidamente passado um atestado de falhanço, ainda antes de ousar, porque a tendência do ser humano em procurar certezas absolutas, e respostas inabaláveis, é um desejo de todos os tempos, que não se esclarece cabalmente ao longo da sua existência. Chegado a esta bifurcação existem sobretudo duas opções. Ou acomoda-se nas poucas certezas que tem, com a ilusão de que as deve conservar muito bem, fazendo com que não saia da sua zona de conforto para ir mais além, ou, não querendo buscar apenas certezas existenciais, ousa arriscar porque deseja ser mais e melhor.
Ambas as situações são passíveis de medo. Na primeira, esse medo domina a pessoa de tal forma, que a faz contentar-se com as poucas certezas que julga ter, não querendo correr o risco de as perder, ficando sem nada. Na segunda, o medo está presente, mas a pessoa não permite que o mesmo tolde a sua razão e o seu coração. Faz-se evidente como alerta para os perigos, e não como entrave ao caminho. Para se ter coragem, para se ser corajoso, é preciso ter medo, caso contrário, entramos numa aventura irresponsável e danosa, pois o medo que não nos bloqueia e paralisa, faz-nos ver onde estão situados os limites de cada coisa. Qualquer pessoa corajosa tem medo! Todavia, usa-o a seu favor, vendo nele um auxílio que alerta, e não um inimigo que destrói.
É frequente elogiarmos pessoas pela coragem em realizarem mudanças na sua vida, que são vistas como arrojadas. Alguém que muda de trabalho aos 40 ou 50 anos e que tem família constituída; aqueles amigos que sempre viveram na cidade, mas passados 20 anos emigram para o campo, porque descobriram a importância do mesmo nas suas vidas; aquela pessoa que decidiu terminar uma relação (seja de que tipo for), porque apesar de a amar, já não se reconhece nesse lugar; aquela pessoa que já no gozo da sua reforma, decide fazer um curso universitário. Enfim, há um sem número de situações e tomadas de decisão por parte de outras pessoas, que merecem o nosso aplauso e admiração, porque é possível vermos aí muita coragem. Mesmo quando ela se faz acompanhar de algum sofrimento, os que olham de fora têm tendência a dizer banalidades como: “pensa positivo, vai tudo correr bem”. Se é inegável que o pensamento positivo nos influencia na forma de encarar os diversos desafios, também é indesmentível que pensar positivo não chega. É preciso agir, e depois, perseverar na escolha. A pessoa corajosa revela-se nesta particularidade, porque além da capacidade de mudar, tem a inteligência de permanecer na sua escolha, sobretudo quando a mesma não se afigura fácil, não significando que tenha errado. Simplesmente, nem tudo é linear e indolor, e as mudanças, ou os recomeços, podem trazer amarguras, porque o caminho não é sempre plano e suave. Porém, aquele que se enche de coragem, ousa caminhar com uma liberdade interior muito grande, e não desiste de buscar o lugar aonde quer chegar. Façamos do medo um aliado, e caminhemos sempre com coragem!
A este propósito, Miguel Torga, no seu poema “Sísifo”, dá-nos uma lição acerca da postura que podemos adoptar perante as mudanças ou os recomeços.
“Recomeça…
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, se nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…”
Adriano Batista
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia