No dia 3 de outubro, o auditório municipal de Olhão acolheu o seminário sob o tema “O acolhimento residencial aos olhos dos diferentes agentes”, promovido pelo Centro de Bem-Estar Social Nossa Senhora de Fátima, em parceria com a Câmara Municipal e a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Olhão.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

O evento reuniu profissionais da área da promoção e proteção, representantes da justiça e técnicos de instituições de acolhimento para discutir os desafios do acolhimento residencial e a necessidade de melhorar o apoio a crianças e jovens em situações de risco. A falta de serviços de saúde mental, especialmente a pedopsiquiatria, na região do Algarve foi apontada como um dos maiores problemas enfrentados.

O grande desafio: a falta de apoio pedopsiquiátrico

Cátia Viegas, chefe de setor de assessoria técnica aos tribunais do Núcleo de Infância e Juventude do Centro Distrital de Faro, foi a primeira a lamentar a insuficiência do sistema de saúde mental na região. “A psiquiatria e a pedopsiquiatria são um parente pobre da saúde. Não se dá o devido valor e já era tempo de mudarmos isso”, afirmou. Aquela psicóloga também lamentou que, atualmente, no distrito de Faro, exista apenas “um pedopsiquiatra para o distrito inteiro”.

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A falta de respostas adequadas tem um impacto direto nas casas de acolhimento, que muitas vezes se veem obrigadas a lidar com situações críticas. Aquela técnica do Centro Distrital da Segurança Social explicou que atualmente, quando um jovem incorre numa tentativa de suicídio, é preciso ir a Lisboa para tratamento e garantiu que a falta de apoio em pedopsiquiatria está a fazer com que as casas de acolhimento sejam chamadas a lidar com situações que não estão preparadas para enfrentar.

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Cátia Viegas também destacou o problema, relacionado com consumos de substâncias, de jovens que frequentemente apresentam comportamentos agressivos. “As casas de acolhimento têm muito receio em aceitar jovens com consumos de droga porque têm receio que este comportamento seja alargado a todo o grupo”, afirmou, ressaltando a falta de pareceres clínicos que possam apoiar as decisões sobre internamentos em comunidades terapêuticas.

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O impacto na vida das crianças e jovens

O procurador da República, Joaquim Garcia, também fez uma intervenção focada na necessidade de preservar a família e evitar o acolhimento institucional, sempre que possível. “Cada vez mais temos de ter uma intervenção de acompanhamento precoce para que não tenhamos de aplicar a medida mais gravosa, que é o acolhimento residencial”, disse.

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O magistrado também criticou as dificuldades enfrentadas por crianças com deficiência. “Em Portugal, 40% das crianças em acolhimento têm uma deficiência física ou mental. Isto é preocupante porque significa que, enquanto sociedade civil, estamos a falhar na intervenção e na preocupação com estas crianças”, alertou.

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Joaquim Garcia também expressou preocupação com as condições nas casas de acolhimento. “As casas de acolhimento não podem pôr as crianças à porta com as malas. Têm de ser criadas alternativas. Este é o principal problema do acolhimento residencial. E a Segurança Social tem o dever de fiscalizar e supervisionar as casas de acolhimento”, afirmou.

Condições de acolhimento e a sobrecarga das equipas

Andreia Oliveira, psicóloga com 13 anos de experiência em casas de acolhimento, falou sobre o impacto do trauma nas crianças acolhidas. “É um dos grandes desafios com que os técnicos e a equipa educativa se deparam. Recebem crianças e jovens provenientes de famílias desestruturadas, de situações de abandono, de violência, de agressividade”, explicou Oliveira. Aquela técnica destacou a importância de oferecer acompanhamento psicológico e psiquiátrico, uma vez que as crianças muitas vezes chegam a estas instituições com dificuldades em estabelecer vínculos. “É natural que tenham muita dificuldade em estabelecer vínculos com uma figura adulta”, disse.

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A psicóloga também relatou que a falta de respostas em saúde mental agrava a situação. “A falta de pedopsiquiatras na região fez-me pensar que, quando iniciei em 2005, não tínhamos resposta de pedopsiquiatria no Algarve. Parece que tivemos um retrocesso novamente”, lamentou. “Se me entristece a questão dos serviços de pedopsiquiatria na região, deixa-me feliz pensar que as equipas técnicas do acolhimento residencial hoje têm supervisão, têm apoio ao nível psicológico”, prosseguiu.

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Andreia Oliveira sublinhou ainda as dificuldades enfrentadas pelas equipas de acolhimento, que vivem uma pressão constante devido à sobrecarga de trabalho e rotatividade de profissionais. “As equipas de acolhimento residencial são também elas equipas de grande desgaste. Há um grande sentimento de frustração. Há um sentimento de que se dá afetivamente a estas crianças e que não se é reconhecido por ninguém”, afirmou.

Caminhos para o futuro

O seminário também incluiu a apresentação de algumas iniciativas de melhoria para o acolhimento residencial. Cátia Viegas anunciou a criação de um Conselho Nacional, constituído por crianças e jovens, representantes de casas de acolhimento, poderão dar a sua opinião sobre as mudanças necessárias no sistema de acolhimento. “Vamos ter representantes das casas de acolhimento que vão poder expressar as suas opiniões sobre as mudanças que vão sendo pensadas neste sistema em termos das casas de acolhimento”, revelou.

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Uma das grandes apostas, segundo Cátia Viegas, é a requalificação das casas de acolhimento, com equipas mais qualificadas e especializadas. “Garantir que 100% das casas de acolhimento se encontram qualificadas face às necessidades efetivas dos jovens. E garantir que 90% dos jovens com medida de promoção e proteção, que tenham os critérios necessários, integram a resposta promotora de autonomia”, anunciou, delineando os objetivos até 2030.

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Maria João Freitas, técnica superior na área da infância e juventude, apelou a que todos os profissionais e agentes envolvidos no acolhimento pensem nas crianças e jovens de forma holística. “Reflitam e pensem sempre nas crianças – seja as instituições, as comissões, as equipas técnicas, os senhores procuradores – de uma forma holística no seu todo, mas sempre atendendo às necessidades das crianças e dos jovens”, pediu, considerando ser importante “investir-se mais nos projetos de vida” daqueles destinatários.

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Um apelo à mudança

O seminário foi claro ao apontar que, apesar dos avanços na qualificação das equipas e no número de respostas, ainda falta muito caminho a percorrer. A falta de apoio psicológico e psiquiátrico especializado continua a ser um problema crítico. Como frisou Joaquim Garcia, “a criança, para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, deve crescer num ambiente familiar, incluindo felicidade, amor e compreensão. Este é o nosso objetivo de todos e é por isso que todos devemos lutar”.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo
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Todos os intervenientes apelaram à criação de mais respostas de apoio psicológico, pedopsiquiátrico e terapêutico, para que crianças e jovens possam ter a proteção e o cuidado necessários para ultrapassar os traumas e dificuldades que enfrentam.

Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo
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O seminário incluiu ainda dois testemunhos que constituíram os momentos mais emotivos do evento, o primeiro de Ana Luísa Gomes, antiga utente do Centro de Centro de Bem-Estar Social Nossa Senhora de Fátima de Olhão e atualmente sua colaboradora no acolhimento das raparigas que a instituição recebe, e o segundo de Tânia, com 15 anos de idade, uma das jovens acolhidas pela instituição olhanense que garantiu ter ali reaprendido a “confiar em adultos”.

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