(Nota: as palavras em “itálico” são expressões de Fernando Pessoa ou de outra “pessoa” e, seu heterónimo)

«Sou dois, e ambos têm a distância _ irmãos siameses que não estão despegados», afirmaria deste modo contraditório a páginas tantas “Bernardo Soares”, o tal “semi-heterónimo” de Fernando Pessoa inventor da “Trialéctica” (“diálogo entre dois-três ou mais personalidades”). Sem esquecer nunca a irmanação ou a sua geminação com “Vicente Guedes”, e ambos seriam, outrossim, coautores do célebre «Livro do Desassossego» (“L. do D.”). E, faltará ainda “um” terceiro “irmão gémeo”…

Tal e qual como os primeiros heterónimos pessoanos do início séc. XX; “Charles Robert Anon” (1905), sendo que este foi depois sincretizado pelo “nome”; “Alexander Search”, geminando-se através da linguística na obra em Poesia inglesa, juntos com o Mestre Fernando Pessoa; (…) have in me too much that is above me,/ Too much I cannot call I. (tanta coisa em mim que me ultrapassa, / Tantos a que não posso chamar Eu.) (IV – 2. «Flashes of Madness», Alexander Search, 1908). O primeiro “nome” (“C. Anon”), soubemos só agora que teve continuidade com “outro nome” (“A. Search”), irmanando-se como “siameses” ao terceiro Poeta: Fernando Pessoa.

Contudo, existe um heterónimo mais original, o primeiríssimo “outro eu” do tempo da sua infância e, para vencer a sua própria solidão; o “Chevalier de Pas”, que seria aventado nos finais do séc. XIX, adoptando o mais antigo “outro nome” do Mestre mas, na sua terceira língua: o francês. Esparsamente, ainda utilizou o latim…

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«O solitário leva uma sociedade inteira dentro de si: o solitário é multidão. E daqui deriva a sua sociedade.»

(Miguel de Unamuno in «Solidão»)

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O “L. do Desassossego”, na minha interpretação, constitui outro “Conto diarístico” Futurista, e detém os principais poemas, frases-versos, ideias, pensamentos, etc., de uma criativa Prosa poética com muitas tipificações acerca do «Heteronimismo Pessoano»; “Criei-me eco e abismo, pensando. Multipliquei-me aprofundando-me (…) Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não.” Pela primeira vez, e precisamente ao fim de cem anos de ficção heteronímica, deparo com o «L. do D.» publicado com os nomes dos seus “dois poetas” principais, e numa ordem cronológica; “Vicente Guedes” e “Bernardo Soares”. No entanto, fica ainda omisso o terceiro e verdadeiro nome e “outro” autor, seu alegado “ortónimo” (“mesmo nome”) ; o de “Fernando Pessoa”. “Ele-próprio”, em “desdobramentos”, assinando o “Prefácio do L. do D.”, é logo detectado nessas primeiras páginas deste esplêndido livro, divagando num breve prólogo acerca de “ele-outro”. Dialogante entre “si ” mas, através de outra ficcionada personalidade, no interior de um restaurante, espaço que muito curiosamente se “desdobra” noutra “sobreloja”, articulando logo na abertura deste “best-seller” e discorrendo acerca da revista «Orpheu», marco fundacional do «Futurismo». Precisamente, e recordando esta rara publicação, fazendo parte do Movimento Futurista literário e pictórico em Portugal. Esse diálogo entre “dois” imaginados personagens do «L. do D.» faz-nos relembrar o elo entre “dois poetas ” amigos; os dois directores da revista “Orpheu”. Esse imaginado diálogo foi reminiscência dos inúmeros debates pelos cafés e restaurantes de Lisboa entre Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, ou dos múltiplos colóquios das centenas de cartas trocadas pelos “dois” entre Lisboa e Paris.

Santa-Rita, esse arrojado Pintor, também seria evocado nesse mesmo introito ao “L. do Desassossego” e, através duma breve descrição acerca de imaginada cena de pugilato no exterior desse mesmo restaurante. Esta figura é também considerada fundadora do Futurismo em Portugal, tal como Mestre Amadeo de Souza-Cardoso também nessa altura por Paris, formando uma nova “Trialéctica” de personagens evocadas. Mestre Pessoa, e o seu braço direito em Paris (Sá-Carneiro), são duas colunas do «Futurismo literário português» mas, não esquecendo nunca outra essência luminista e pictórica: Guilherme de Santa Rita. Aliás, foi propósito deste terceiro elemento de se tornar, paralelamente, Director da revista “Orpheu”. Essa íntima tríade, está até registada na derradeira carta de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro, e sempre em diálogo heteronímico entre “Eu” e o “Outro”. Mestre Almada-Negreiros formaria ainda outra trindade, no Museu das “janela verdes”.

As semelhanças entre “Bernardo Soares” e “Álvaro de Campos” “Futurista” de “Tavira” e, do “Algarve”, são também reconhecidas pelo Mestre “fingidor”, e são também significativos do Futurismo literário por descobrir. Sem esquecer nunca o mesmo género de literatura; o “Conto diarístico”, que já tinha sido utilizado pelo seu melhor amigo, e também fundador do Futurismo: Mário de Sá-Carneiro. Precocemente, Sá-Carneiro publicaria em 1915 e com relativo sucesso junto com as suas “novelas futuristas” outro paradigmático livro, cujo título é bem sugestivo da «Arte Luz» (“Futurismo”): «Céu em Fogo». Em nota de curiosidade, Pessoa é encarregue da edição desta publicação em Lisboa. Sá-Carneiro seria quase outro “heterónimo” de Fernando.

A simples anulação do “eu”, e de que fez parte o “Niilismo” (conceito filosófico negativo mas, iconoclasta) propagado por Filippo Marinetti (fundador italiano do movimento Futurista por Paris), teve desde logo, em Lisboa, um excelente opositor, através da amplificação do “Eu” pessoano e, sobretudo, por meio da desmultiplicação de “vários” “Eus” (“Heteronimismo”). O «Heteronimismo pessoano» constitui elaborado contraditório artístico ao “Manifesto” Futurista publicado em 1909 por Marinetti no jornal «Le Figaro». Esse conjunto de dogmas, são também desde logo reproduzidos em «O Heraldo» de Tavira no mesmo ano e, pela primeira vez em Portugal (Teresa Rita Lopes).

Recordemos ainda que Mestre Fernando Pessoa teve sempre por Paris “Outro” grande apoio, e do Poeta amigo Mário de Sá-Carneiro, co-fundador da “Arte Futura” ou “Arte Luz” (“Futurismo”), potenciando essa nova estilística. A “guerra” estilística de Fernando Pessoa com Marinetti foi tal e qual como “uma cena de pugilato entre dois indivíduos” («Prefácio do L. do D.») exaltando à sua maneira “…o soco” (inserto no Manifesto Futurista de Marinetti) mas, no bom sentido artístico antagónico e, complementar, através dum contraditório “combate” mas, pacífico.

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Bellum sine bello

(“Guerra sem guerrear” epígrafe de «Mensagem»)

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Seria o mesmo Sá-Carneiro que, permanecendo em Paris nessa altura (1912-1916), numa das suas muitas cartas dirigidas a Pessoa, viria a reforçar a vibrante “geminação” entre os vários heterónimos pessoanos, e a apelidá-los de “Manos” mas, também num formato comercial: “Manos e Cª”. Esta “irmandade”, seria constituída por meio de vários “discípulos” ou até de “evangelistas”, e que Pessoa transmitiu por carta ou por meio de muitos diálogos críticos acerca dos variados movimentos artísticos em formação nessa época. Mas, essencialmente, numa ligação bíblica e religiosa evidentes, através do persistente “Christismo” neopagão de Fernando Pessoa.

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Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum

(“Bendito seja Deus Nosso Senhor que nos deu o sinal” in «Mensagem»)

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«Eu-próprio o Outro» é o preciso título hedonista do “Conto diarístico” minimalista de Sá-Carneiro (in «Céu em Fogo»). Este brevíssimo “Conto” introduz a sua noção temporal mas, também espacial, coincidentes em parte com o “Cubismo” pictórico de Mestre Pablo Picasso, do qual também comungara estilisticamente, por Paris. E iria constituir outra multiface antagónica, paralelamente “Luminista” mas, complementar do “Futurismo português”. Gerada de maneira criativa por Sá-Carneiro, é essencialmente retrospectiva, através da temática acerca do “Tempo”. O literato Marinetti, pelo contrário, é belicista, e tinha acabado de proclamar a morte do “Passado” e do “Tempo e o Espaço”, registados de forma intempestiva no seu Manifesto Futurista. Por sua vez, o hedonismo e o egotismo de Mário de Sá-Carneiro, muito centrado nele próprio e, pela recorrente expressão religiosa; “Minha alma”, apenas admitiria a diferença entre “dois” (“Eu e o Outro”) mas, ainda com outro “intermédio”. Acometido pelo tema do “Tempo”, e por meio do lema “Espaço” mas, amplificados pela “Luz” (“Luminismo”), Sá-Carneiro desenvolveu-os junto ao mote do “Passado” como ninguém. O poema de 1914 com o título «7», com muitos traços do seu egocentrismo, tendo sido especialmente dedicado a Fernando Pessoa, é bem revelador da outra espécie de “trindade” religiosa (“Trialéctica”) temporal, inserindo o «Heteronimismo Pessoano»; “Eu não sou eu nem sou o outro,/ Sou qualquer coisa de intermédio :/ Pilar da ponte de tédio/ Que vai de mim para o Outro.” E patenteando a sua muito própria noção “trial” da “Trialéctica” pessoana e, acerca do “Futurismo” lusitano, englobado na relação constante e hifenizada: “PassadoPresenteFuturo”. O debate estético entre Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, registado em várias centenas de cartas ou postais trocados entre os “dois poetas”, é feito entre 1912-1916. A importante “Carta de 14 de março 1915” antevê até a participação influente de Sá-Carneiro na feitura dalguma Prosa poética a inserir no «Livro do Desassossego».

Se Picasso foi inicialmente avesso à demarcação estilística “Cubista”, e não estando de acordo com essa nomenclatura tipológica, e que contemplaria a sua revolução pictórica mundial, também Fernando Pessoa foi avesso, numa relação antinómica à denominação classificativa “Futurista”. Mas, por ordem de razões muito idênticas que se prendem com a noção errada de uma “Escola” estética, de que foram ambos, aliás, totalmente avessos. A criatividade residiria em não haver “Escola” artística nenhuma. Nunca o Mestre se referiu ao “Futurismo” senão através do seu principal representante: “Álvaro de Campos” “Futurista”. Os desbragados elogios de Sá-Carneiro à «Ode Triunfal» e às outras “Odes Futuristas” de “A. de Campos”, em oposição estética declarada a Marinetti, são em Literatura, casos de extraordinária importância no campo das Artes e, do século XX.

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MARINETTI + PICASSO = PARIS < SANTA RITA

PINTOR + FERNANDO PESSOA

ÁLVARO DE CAMPOS

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(excerto de uma perequação inserida no poema «MANUCURE», Sá-Carneiro, 1915)

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 (continua)

Vítor Cantinho