Na segunda parte da formação sobre o tema dos abusos sexuais cometidos contra menores e adultos vulneráveis que a Diocese do Algarve promoveu na passada segunda-feira, 20 de março, foi abordada a legislação canónica mais recente sobre o assunto que motivou a revisão do livro VI do Código do Direito Canónico.
Na iniciativa, que teve lugar durante todo o dia no Seminário de São José em Faro, o cónego Rui Barros Guerreiro, licenciado em Direito Canónico pela Universidade Gregoriana de Roma, referiu-se ao Motu Proprio ‘Sacramentorum sanctitatis tutela’ de São João Paulo II, para explicar que o documento veio “preencher uma lacuna na lei do Código de 1983 que nada contemplava acerca dos ‘delicta graviora’ (crimes mais graves)”.

O juiz do Tribunal Interdiocesano de Évora, Beja e Algarve explicou no encontro, participado, para além do bispo diocesano, pela quase totalidade dos 59 padres e nove diáconos a trabalhar na diocese, que as normas processuais incluídas determinaram que “assim que se tenha notícia de um caso destes, imediatamente seja comunicado à Congregação para a Doutrina da Fé” (atual Dicastério para a Doutrina da Fé).
Referindo-se às normas substanciais e processuais acrescentadas no pontificado do Papa Bento XVI, o orador explicou ter sido “equiparado ao menor [de idade] a «pessoa que habitualmente tem o uso imperfeito da razão»” e que se incluiu “o direito de a Congregação para a Doutrina da Fé poder julgar os cardeais, os patriarcas, os delegados da Sé apostólica, bem como todas as outras pessoas”, podendo também aquela, “por circunstâncias especiais, delegar num ordinário”.
Sobre o Motu Proprio ‘Vos estis lux mundi’ do Papa Francisco referiu que as normas acrescentadas passaram a prever também “assinalações a membros de institutos de vida consagrada ou sociedades de vida apostólica”.
O diácono Luís Galante, notário do Tribunal Interdiocesano de Évora, Beja e Algarve, explicou que o “vademécum” de 2020, preparado para ajudar os bispos e responsáveis de institutos religiosos no tratamento de denúncias de abusos sexuais sobre menores ou pessoas vulneráveis, estabeleceu que “qualquer pessoa pode fazer uma denúncia” à autoridade da Igreja. “Em 2019, o Papa Francisco tornou obrigatória essa denúncia para os membros do clero e dos institutos religiosos. Assim, sempre que os clérigos e os religiosos tenham conhecimento, ou pelo menos tenham fundados motivos para supor da existência de abusos sexuais, têm obrigação de os comunicar ao bispo competente, exceto se tal denúncia colocar em causa o segredo de confissão”, precisou.
Aquele advogado referiu que a reforma do capítulo VI do Código do Direito Canónico passou a incluir um novo parágrafo que “prevê penas para quem se omite de comunicar a notícia do crime a que estava obrigado”. “Recebida a denúncia, o bispo deve encaminhá-la para a Comissão Diocesana de Proteção de Menores. As alegadas vítimas devem ser acolhidas, ouvidas e tratadas com respeito e os seus relatos não devem ser minimizados, mas devidamente avaliados”, acrescentou, lembrando que uma das novidades introduzidas pelo documento relaciona-se justamente com as denúncias anónimas que “deixam de poder ser automaticamente descartadas e até mesmo uma denúncia proveniente de fontes cuja credibilidade possa parecer, à primeira vista duvidosa, não deve ser descartada, mas dar lugar a uma investigação”.

O orador explicou que as diretrizes emanadas da Conferência Episcopal Portuguesa em 2020 determinam que o «vade-mécum» “deve ser integralmente aplicado, indicando a necessidade de escutar, acompanhar e garantir uma adequada assistência médica, espiritual e social às vítimas e seus familiares”. “Recebida a denúncia deve proceder-se a abertura de uma investigação prévia, caso considerada pelo menos verosímil”, explicou, acrescentando que, “dando sempre conhecimento do caso à Santa Sé”, “o bispo deve iniciar a investigação e aplicar as necessárias medidas cautelares que são um ato administrativo e que podem passar pelo afastamento do clérigo do exercício de todos ou alguns ofícios, incluindo a proibição do exercício público do ministério”. “O próprio sacerdote alvo da denúncia pode pedir o afastamento provisório de funções durante a investigação”, completou.
Neste sentido, realçou ser preciso “ter bem presente a distinção canónica entre a figura da suspensão e a figura das medidas cautelares”. “Na linguagem corrente usam-se indiferentemente, dando lugar a confusões e mal-entendidos, mas na linguagem técnico-jurídica devemos saber distingui-las. Na legislação canónica vigente a suspensão é uma pena que decorre de um processo penal, pelo que tecnicamente o termo não se aplica à investigação prévia, mas aqui apenas haverá lugar a medidas cautelares”, esclareceu.
O juiz Pedro Condé tinha explicado que “o único caso em que, rigorosamente, um clérigo pode ter o dever legal de denúncia seria um caso em que esse padre estivesse também a exercer funções numa instituição social ou que visasse um fim público, por exemplo num caso de uma IPSS”, mas o notário do tribunal eclesiástico esclareceu que o Direito Canónico tem outra orientação. “Mesmo na ausência de uma orientação legal da ordem jurídica do Estado, o Dicastério para a Doutrina da Fé recomenda que a autoridade eclesiástica, o bispo ou um superior maior, apresente uma denúncia às autoridades civis competentes —entre nós, o Ministério Público — sempre que o considere indispensável para tutelar a pessoa ofendida ou proteger outros menores do perigo de novos atos delituosos, desde que ao fazê-lo não ponha em causa o segredo de confissão”, concretizou.
O advogado adiantou ainda que no caso de um bispo não cumprir as normas estabelecidas para os casos de abusos, “poderá ser responsabilizado e um bispo que seja acusado de ações ou omissões que visem interferir ou contornar as investigações civis ou canónicas incorre na prática de um delito canonicamente punível que pode levar até a destituição do ofício episcopal”. “As penas estendem-se aos clérigos, membros de institutos de vida consagrada ou de sociedades de vida apostólica ou a qualquer fiel que goze dignidade ou exerça cargo ou função na Igreja”, acrescentou.
O diácono Luís Galante destacou que “o prazo de prescrição em Direito Canónico é mais longo do que na legislação portuguesa”, pois “os casos prescrevem num prazo de 20 anos a contar do 18º aniversário da alegada vítima”, ou seja, aos 38 anos da pessoa. “Porém, já na legislação avulsa anterior e agora no Código está previsto que esta prescrição, no caso de abuso sexual de menores, pode ser revogada por decisão do Dicastério para a Doutrina da Fé”, acrescentou, explicando que estes crimes deixaram de ser catalogados no capítulo VI do Código como “delitos contra obrigações especiais dos clérigos e passaram a integrar os delitos contra a vida, a dignidade e a liberdade humana”. “Foram colocados a par dos crimes de homicídio e aborto, o que mostra bem a gravidade que a Igreja passou a atribuir ao crime de abuso sexual de menores”, considerou.
Clero do Algarve recebeu formação sobre abusos contra menores e adultos vulneráveis
Especial: 15 pontos para entender como a Igreja trata casos de abusos sexuais