
São várias as pessoas que me têm pedido uma opinião sobre a tradução da Bíblia de Frederico Lourenço, cujo primeiro volume (Os Evangelhos) saiu estes dias. Aqui fica. Vale o que vale: uma opinião entre outras.
1- Confesso que me aproximei da tradução com curiosidade académica, mas com alguma desconfiança perante a publicidade ambígua feita pela distribuidora da obra: ao contrário do que deixa subentendido, não é a primeira vez que a Bíblia é traduzida das línguas originais para português; o Novo Testamento já o foi várias vezes, tal como o Antigo Testamento a partir do hebraico (e grego no que se refere aos 7 livros escritos originalmente nesta língua: Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc, 1-2 Macabeus). É o caso das edições da Difusora Bíblica e Sociedade Bíblica, para recordar as mais recentes. A novidade da obra de Frederico Lourenço – e daí a minha expectativa – está em traduzir a versão grega do Antigo Testamento, chamada dos LXX, elaborada a partir do texto hebraico, no séc. III a.C. em Alexandria, destinada aos judeus que viviam na diáspora e que já só falavam e compreendiam a língua franca da altura: o grego. Ou seja, o que Frederico Lourenço faz, em relação ao AT, é uma tradução para português da, por sua vez, tradução do hebraico para o grego. E este é um aspeto muito positivo, pois era algo inexistente na nossa língua. No entanto, não me posso pronunciar sobre ela, pois o volume que esta semana saiu do prelo contém apenas os Evangelhos. É sobre este que escrevo.
2 – O autor apresenta o seu trabalho como uma tradução que «privilegia, sem a interferência de pressupostos religiosos, a materialidade histórico-linguística do texto». Esta afirmação deixou-me apreensivo, pois a palavra não é nua; reveste-se sempre de contexto e de finalidade: o Sitz im leben (o contexto vital) em que os diferentes livros da Bíblia foram escritos é religioso; todos eles partem de um contexto religioso e tem uma finalidade religiosa. Fazer uma leitura sem «pressupostos religiosos» é desencarnar o texto da sua alma semântica e ler o texto sem contexto. Ora, aqui reside, na minha perspetiva, o grande calcanhar de Aquiles desta obra: uma acentuada e positiva preocupação com o aspeto linguístico (que se expressa de forma eloquente nas notas), mas esquecendo que, embora a língua seja grega, o conteúdo é veterotestamentário. Ou seja, por detrás das palavras gregas estão conceitos não gregos mas hebraicos e semitas. Aliás, até ao nível idiomático surgem várias expressões que são uma tradução literal do hebraico, como é o caso da pergunta de Jesus em Jo 2,4, que traduz o hebraico “mah-lî walak”, e que Lourenço apresenta como «O que tem isso a ver contigo e comigo, mulher?», quando o que Jesus questiona é diferente: «O que há entre mim e ti, mulher?» (literalmente: «O quê para mim e para ti, mulher?»; ou seja, não se trata da relação dos dois com a situação, mas de Jesus com a sua Mãe). E o autor não se fica por aqui: embora afirme que não quer partir para a sua tradução com «pressupostos religiosos» e que «as notas não pretendem interpretar o texto na sua extraordinária riqueza teológica (nem eu teria competência para tal)», acaba por partir com preconceitos religiosos e a partir deles fazer considerações teológicas, como é o caso da nota que apõe ao versículo em questão, onde fala de «mariolatria medieval»! E contradizendo ainda o que afirmara, recorre com frequência ao trabalho de biblistas e exegetas para fundamentar as suas opiniões (muitas vezes sem os citar). Então, em que ficamos?
3- Embora o não diga expressamente, Lourenço deixa pairar ao longo da introdução (e das entrevistas que deu) a suspeição sobre todas as outras traduções em língua portuguesa; apenas a sua levará o leitor a encontrar-se com a verdade «histórico-linguística do texto». Qual verdade? A de Frederico Lourenço? A Bíblia não tem uma tradução, mas traduções. Todas elas com qualidades (como a de Lourenço) e defeitos (como a de Lourenço), que se enriquecem e enriquecem o sentido, na medida em que não se são mónadas mas textos dialogantes, que iluminam o significado sempre inesgotável de determinada passagem ou livro bíblico..
4- Uma outra característica reveste esta obra e que é, concomitantemente, a sua riqueza e fraqueza: resulta do trabalho de um homem só. Riqueza porque lhe dá harmonização de critérios; fraqueza porque tem origem num texto não dialogado. De há 4 anos trabalho na Comissão Coordenadora da tradução da Bíblia para a Conferência Episcopal Portuguesa e foi-me entregue a responsabilidade da subcomissão que se ocupa do Novo Testamento. Neste momento estamos a rever a tradução dos Evangelhos apresentada pelos biblistas a quem foram solicitadas. Nesta subcomissão somos três: dois exegetas e um professor universitário de grego. Acontece-nos muitas vezes ter de discorrer demoradamente sobre determinadas opções de tradução até chegar a uma conclusão e quando não há consenso preferimos deixá-la em suspenso e consultar outros exegetas. Ou seja, trata-se de uma tradução dialogada, fruto de reflexão demorada sobre o sentido linguístico, mas também semântico e simbólico de determinada palavra ou expressão. A perspetiva de cada um melhora a dos outros e a tradução resultante surge enriquecida pelos diferentes ângulos e contributos. Na tradução de Lourenço encontramos apenas a perspetiva de Lourenço.
Em conclusão: Frederico Lourenço aporta-nos um contributo muito positivo, na medida em que nos proporciona não «a» tradução, mas «mais uma» tradução de Bíblia, com anotações linguísticas que nos ajudam, a par de outros e variados estudos, a tirar do tesouro que é a Sagrada Escritura «coisas velhas e coisas novas» (Mt 13,52).