«SE AS PEÇAS ESTIVEREM BEM LIMPAS E BEM CONSERVADAS TÊM O SEU PRÓPRIO BRILHO»

«Quando uma peça entra no Atelier de Conservação e Restauro o primeiro passo é analisar e fotografar». Quem o afirma é a Técnica de Conservação e Restauro Marta Pereira. Trabalha desde 2017 no atelier criado pela ARTgilão TAVIRA, com uma outra colega. Prepararam e recuperam todas as peças que estão na Coleção Visitável da Igreja de Santa Maria, nesta cidade. De lá para cá, muitas peças têm passado pelas mãos destas técnicas. As últimas foram dois quadros que se encontram em exposição no Paço Episcopal e estão, já, a trabalhar em dois outros quadros pertencentes à Igreja de S. Pedro, em Faro.

A fotografia permite realizar um «exame e análise» das peças, bem como «documentar todo o processo – antes, durante e depois do restauro», explica Marta Pereira, referindo que através deste registo é possível, por exemplo, identificar «elementos que constituem a peça», como «pormenores decorativos, ornamentos, tipo de pincelada». «Fotografam-se todos os vestígios de danos e alterações, lacunas, destacamentos, fendas, sujidade, presença de caruncho, craquelet, oxidações», «restauros antigos», de modo a ter um melhor conhecimento sobre o objeto que se vai trabalhar. Existem outras possibilidades, como o recurso ao Raio-x para ver o interior de peças ou a «análises à camada protetora de uma peça», que permite «saber quais os materiais que a constituem e qual o produto a usar para a sua limpeza». «É como na nossa casa», refere a técnica da ARTgilão. «Sabemos que existem produtos específicos para o fogão, para o chão, para os vidros. Cada produto tem a sua função de acordo com o objetivo que se pretende».

Assim, os primeiros passos que se dão quando se pretende recuperar uma peça são sempre os mesmos: «analisar, registar e definir a metodologia de intervenção, ou seja, quais os procedimentos necessários para o objetivo que se pretende de acordo com o estado da peça». Só depois se inicia o restauro.

Cada caso é um caso e cada peça tem o seu próprio brilho

Foto © João Ribeiro

Poucas são as peças que não sofreram intervenções prévias, ao chegarem às mãos destas e de quaisquer outros técnicos de Restauro. Cada caso é um caso e mesmo duas peças «constituídas pelos mesmos materiais e» com «as mesmas características, podem reagir de forma distinta ao passar do tempo e aos procedimentos de conservação e restauro».

Foto © João Ribeiro

Ao longo dos anos, os objetos vão sendo mexidos, por «vezes com materiais que acabam por promover mais danos», refere Marta Pereira. «É frequente, por exemplo», diz, «encontrar pregos enferrujados, colas demasiado fortes, camadas de tinta que cobrem parcial ou completamente o esplendor da pintura original».

É igualmente frequente «aplicar óleo ou azeite nas peças para dar brilho» ou mesmo purpurina, que confere uma «falsa sensação de bom estado que o brilho excessivo», mas que é tão do gosto popular e vemos em muitos locais que foram recuperados, não por técnicos de restauro devidamente formados, mas por leigos na matéria.

Foto © João Ribeiro

Estes materiais, como é o caso dos óleos/azeite, acabam por se «entranhar nas fissuras da pintura alterando a sua cor de modo irreversível». A técnica dá exemplos: observa-se «bastante este efeito nas zonas mais baixas e acessíveis dos altares, ao nível dos olhos, que muitas vezes têm um aspeto esverdeado, muito difícil de remover, pela aplicação de azeite ao longo de muitos anos».

Fotos © João Ribeiro

No caso das purpurinas (que são tintas feitas «à base de vários metais, entre os quais o ferro, que oxida/enferruja com o tempo), as peças «acabam por ficar com um tom escuro e baço que em nada têm a ver com o seu brilho original», para além de que a própria leitura das peças é dificultada, «no sentido em que, ao incidir numa superfície lisa e brilhante, a luz reflete, criando um efeito espelho».

Foto © João Ribeiro

«Se as peças estiverem bem limpas e bem conservadas têm o seu próprio brilho», salienta a técnica da ARTgilão. Por isso, importa que quem tem a seu cargo peças antigas (nomeadamente as Paróquias e as Dioceses, que possuem igrejas cheias de retábulos antigos, talha dourada, estatuária, entre tantas outras), recorram a técnicos devidamente habilitados para os ajudar na recuperação e conservação das mesmas. Estes técnicos têm formação tão detalhada, que as disciplinas de Química e Química aplicada ao restauro fazem parte dos seus curricula. E a técnica destaca, ainda, o seguinte: «existem dois conceitos de extrema importância em Conservação e Restauro que são o de Compatibilidade e o de Reversibilidade. Ou seja, os produtos e materiais utilizados devem ser, dentro do possível, semelhantes e compatíveis com os materiais que foram utilizados originalmente para fazer a peça, de modo que não provoquem tensões, devem ser duráveis e devem ser reversíveis no sentido de não comprometer a possibilidade de futuras intervenções, caso seja necessário, devendo haver a possibilidade de regresso ao estado original da peça com relativa facilidade». Essa situação muitas vezes torna-se impossível quando não são respeitados os materiais corretos e são aplicados os tais óleos e purpurinas.

Importa, como salienta Marta Pereira, seguir as diretrizes que internacionalmente estão definidas para esta atividades e recorda o que diz o Código de Ética – “O Conservador-Restaurador: Definição da Profissão” (1984), publicado pelo ICOM: «O conservador-restaurador deve estar consciente da natureza documental de um objeto. Cada objeto contém – isoladamente ou em conjunto – mensagens e informações históricas, estilísticas, iconográficas, tecnológicas, intelectuais, estéticas e/ou espirituais. Ao deparar-se com estes dados no decorrer da investigação e do trabalho sobre o objeto, o conservador-restaurador deve estar sensibilizado e ser capaz de reconhecer a sua natureza, deixando-se guiar por eles durante a execução da sua tarefa».

Restaurar é conhecer e entender as peças

Fotos © João Ribeiro

Tratar uma peça não é somente devolver-lhe um aspeto cuidado e limpo. É, muitas vezes, compreender de que é feita, como se pode manter em boas condições ao longo do tempo e, também, entender a sua história, como e porque foi feita.

«Todas as peças têm os seus desafios e a sua beleza», afirma Marta Pereira e recorda algumas das que passaram pelas suas mãos no Atelier de Conservação e Restauro da ARTgilão TAVIRA. «Foi interessante restaurar a imagem de São Paulo Eremita. Foi muito interessante descobrir um cabelo grisalho por debaixo de uma cera acastanhada. De facto, São Paulo Eremita morreu bastante idoso, por isso faz todo o sentido que seja representado com o cabelo acinzentado. É uma peça muito interessante a nível estético», conta. E fala, igualmente, do «leitão pertencente à imagem de Santo Antão» que é um dos atributos do Santo. «Estava coberto com uma tinta preta uniforme e por baixo tinha a policromia original, com uma representação delicada do pelo do animal», relata e acrescenta: «É sempre muito interessante descobrir policromia original por de baixo de repintes sem grande qualidade técnica. E é interessante verificar que muitas vezes a policromia original não está assim em tão mau estado que justifique esse tipo de intervenção».

Este trabalho de investigação e conhecimento das peças ajuda a compreender todo o processo de criação das mesmas, torna os trabalhos dos técnicos e as próprias peças muito mais interessantes. E não são poucas as vezes a que obriga a um trabalho «ao estilo CSI», como classifica a técnica. «Através da observação atenta e com alguma experiência é possível perceber se a degradação se deve a fatores ambientais (humidade alta, calor excessivo, poluição, fumo…) ou a atos provocados pelo homem (utilização de materiais incompatíveis, vandalismo, queda, movimentação de peças de forma desadequada…). Quando recebemos uma peça em fragmentos quase sempre é possível perceber o que aconteceu e como aconteceu», explica.

Aspeto antes e depois do restauro

No caso do quadro de S. Pedro, pertencente à coleção do Paço Episcopal, a «tinta estava a destacar da tela e antes de mais foi necessário perceber porque é que isso estava a acontecer» e Marta Pereira diz que o «mau estado deveu-se a atos provocados pelo homem. Num restauro anterior foi aplicada uma camada de cola forte no reverso da tela tornando-a rígida e criando tensões irregulares nas várias camadas que constituem o quadro, fazendo com que a tinta destacasse do suporte (tela)».

Assim, existem algumas linhas de rumo no trabalho dos técnicos de restauro, identificados pela Técnica da ARTgilão: conhecer as peças, escolher bem os produtos a usar no seu trabalho («a escolha dos produtos pode ser tão minuciosa ao ponto de um produto funcionar para uma cor e já não funcionar para outra; ou funcionar numa zona e noutra idêntica já não funcionar») e conservar, fazendo com que «os materiais de que é feita a obra durem mais tempo», percebendo «quais são os principais fatores de degradação, que promovem o mau estado de conservação, e tentar revertê-los». E estar em permanente atualização, relativamente aos estudos que são feitos e publicados nesta área, para saber, esclarecer dúvidas, fazer um trabalho cada vez mais minucioso e com qualidade.

O atelier da ARTgilão está preparado para realizar qualquer tipo de restauro

Foto © João Ribeiro

No Algarve existem vários técnicos desta área a trabalhar, sobretudo em Câmaras Municipais. A ARTgilão TAVIRA é a única empresa paroquial que trabalha neste campo e tem técnicas próprias. «Inicialmente, a ideia passava pelo restauro das peças próprias da Paróquia, mas foram surgindo pedidos e, devido às condicionantes impostas pela pandemia (nomeadamente a diminuição do número de visitantes), houve a necessidade de aceitar os pedidos e encomendas externos, como aconteceu com as Peças do Paço e da Paróquia de S. Pedro», explica o padre Miguel Neto, Pároco de Tavira e diretor da ARTgilão.

A empresa está, pois, preparada para realizar trabalhos nesta área e, mesmo que não realize diretamente, está em condições de efetuar as avaliações iniciais, podendo «recomendar um conservador-restaurador especializado dentro da nossa rede de contactos», diz Marta Pereira.

«O que queremos, para além de realizar este trabalho, é sensibilizar aqueles que têm responsabilidade sobre o património, sobretudo dentro da Igreja, para a necessidade de o conservar bem, de lhe dar dignidade e de o mostrar de forma interpretada, com coerência e contando histórias que revelam a nossa identidade cristã», evidencia o Pároco de Tavira, que também é o responsável Diocesano da Pastoral do Turismo e Diretor da Obra Nacional da Pastoral do Turismo. «Neste tempo de tantas dificuldades relacionadas com o turismo, temos de oferecer qualidade e uma visão contemporânea de como conhecer o património», conclui.