“Maria diz que eu existo e assim eis que eu também me apercebo de que existo. Pergunto-me: não podia aperceber-se sozinho de que existo? Parece que não. Parece que é preciso que seja outra pessoa a avisar.” Erri de Luca, in Montedidio, p. 78.
Quando me pedem para escrever sobre grandes temas de humanidade sinto-me pequeno, muito pequeno, para fazê-lo. Não gosto de contribuir para o ruído, mas sim para uma tentativa de diálogo, onde parto do pressuposto, talvez ingénuo reconheço, de haver pessoas que se escutam para além das suas diferenças de pensamento e experiência de vida, podendo assim aprender juntas. A existência acontece de forma particular na beleza da relação. A vida ganha densidade na partilha, em especial quando permite eliminar a solidão de alma.
Desde que comecei a entrar mais a fundo no livro do Génesis, sinto um fascínio crescente pela riqueza do sentido do texto que faz autênticos ensaios sobre humanidade. Ligada ao divino, é certo, mas, ainda assim, de como cada ser humano é único. Logo na primeira palavra Bereshit, traduzida por “no princípio”, somos convidados a sair do tempo cronológico para entrar no início que cada segundo do presente traz. Esse convite implica luz de razão e de afecto que se abre à relação com o todo, não sendo, assim, reduzido a uma coisa fechada sobre si mesma. O ser humano é criado ao sexto dia precisamente em relação de vida, com a particularidade desse acontecimento ser caracterizado como “muito bom”. A primeira visão sobre a humanidade é muito boa, bela, ajustada. Não há desgaste, não há cansaço, não há sombras, há simplesmente a beleza da criação de quem se torna responsável por continuar a ser dador de vida.
A vida. Essa realidade que tem tanto de objectiva como de poética, estando sujeita a leis e decisões de outros. Pois, “é preciso que seja outra pessoa a avisar [da existência]”. Seria muito bom que não fosse um aviso apenas quando dá jeito, quando os braços e pernas são produtivos, mas em todo o momento que promove amor, próprio e pelo outro. E quando se sofre? Quando há o sofrimento que tudo deseja terminar, dando total palavra à dor? A frase bonita do amor quase que abruptamente se anula. Ou então, pode ser o momento de deixar de ser apenas bonita e ganhar toda a consistência.
No mundo das pressas, em que o tempo é precioso para utilidades, é fundamental parar para escutar(-se) nessa existência que se quer em relação. Todos, sim, sem receio do absoluto, temos profundo desejo de sermos amados, em especial na fragilidade. Nunca rejeitados. Recordo a belíssima forma como Clarice Lispector termina uma das suas preces “faz com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha”. A questão da morte, apesar de ser profundamente íntima, tem muito de relacional. O modo como se encara a morte está em profunda conexão no modo como se vive. Daí a minha dificuldade em pensar numa legislação mais voltada para a morte que para a vida. Antes daquele momento, há tantos passos prévios a dar, a trabalhar, a implementar, revelando ao ser humano que não está a mais, independentemente da idade ou dos estados emocional, mental, físico. A sua vida, a vida de cada pessoa, tem algo a dizer. Por exemplo, e já contemplado em quadro legal, que não forcem a vida, mas que se sinta cuidada, aparada, afagada por essa mão humana que ali está a acompanhar o natural último suspiro.
Cada um de nós terá histórias imensas de vida e de morte. A história já revelou muitas legalizações de mortes. Quero sonhar princípios, inícios, de diálogos entre razão e afecto, renovando em cada momento o “muito bom, belo, ajustado”, que falem sempre de vida.
Sacerdote da Companhia de Jesus (jesuíta), natural de Portimão
Foto © Pedro Sadio