Foto © Samuel Mendonça/Folha do Domingo

“É perigoso responder a Deus. Nós nunca sabemos onde é que Ele nos vai levar”. A afirmação é da irmã Marta Mendes, da congregação Aliança de Santa Maria, na segunda tertúlia de um conjunto de cinco que a paróquia das Ferreiras está a promover até junho.

“Quando senti o chamamento de Nosso Senhor era verdadeiramente um tormento! Primeiro porque eu não queria e depois porque não me largava! Era muito esta questão de eu não conseguir negar aquilo que me estava a acontecer”, acrescentou a religiosa na tertúlia sobre o tema da vocação que decorreu no salão paroquial no passado dia 16 deste mês.

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“Tudo começa quando eu percebo que Deus me trespassa com o seu amor, quando eu já não posso negar que esse Deus, que me toca, faz-me parar e me atormenta com o desejo de avançar e seguir caminhos desconhecidos. Tudo começa com a disposição para responder a uma voz que me preenche, mesmo sem que eu a conheça completamente. Amar a voz que me interpela, o Deus que me chama, é sem dúvida assumir o risco de me perder, é o risco de abrir mão da tentação de posse e do controlo da minha própria história. É confiar”, prosseguiu, acrescentando que “a vocação abraça a vida toda do homem, que não pode existir sem esta chamada e esta resposta”, e que, “neste sentido, tem que se entender a vocação como um dom”.

A consagrada realçou que “a vocação é experimentar a beleza de um Deus incondicionalmente bom”. “Ser chamado é, então, perceber que Cristo me procura. A iniciativa é sempre de Deus. A vocação não é senão dizer que sim a um amor que já existe”, completou.

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A irmã Marta Mendes concluiu assim que “ninguém tem vocação”. “Esta vocação com que Deus me interpela, através de mediações humanas, é uma vocação que eu não possuo porque se eu possuísse a vocação, já não seria vocação, seria a minha voz. Sou tido por essa vocação, através da qual, se sou fiel, me digo e me defino. É Deus quem me tem. Deus é que se faz vocação em mim. Não sou eu que manipulo a vocação”, sustentou a irmã da mais recente congregação portuguesa, surgida em 1966 com ligação à mensagem de Fátima, mas criada como congregação apenas em 2002 e como instituto há cerca de três anos.

A religiosa defendeu ser necessário reconhecer então este pressuposto. “Implica que eu reconheça que não sou dona da vocação e não posso partir do princípio que posso dar o sentido que eu quero à vocação”, sublinhou, considerando que a sociedade “distorce” a forma como se entende aquela dimensão da vida. “Medem-nos pôr aquilo que fazemos e não por aquilo que somos. Isto é muito fruto da saga da sociedade”, lamentou, considerando que “isto, de alguma maneira, impede o homem de optar por uma vida comprometida”, “ou pelo medo daquilo que Deus lhe possa pedir” ou porque “não está preparado para o sofrimento”.

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A consagrada acrescentou haver “uma grande resistência” por parte de famílias, algumas das quais cristãs, à consagração de filhos seus, em benefício da formação académica e da “carreira bem remunerada”.

“Frequentemente vemos um homem, senhor de si, livre, autónomo, mas paradoxalmente altamente dependente daquilo a que se chama sociedade livre. E será que eu, Marta, tenho lugar nesta sociedade? Se é uma sociedade livre, então também devia haver lugar para os castos. E não é bem assim – pelo menos não é a experiência que eu tenho – porque acham, às vezes, que nós somos obsoletas”, criticou.

“Estamos perante um homem que julga construir-se a si mesmo, se a sua vontade for inquestionável, mas paradoxalmente um homem altamente frágil, de olhos sombrios, sem rumo, vagueando pela vida, como que à procura de algo mais, a que nem sabe muito bem dar nome, extenuado pela saga da sociedade”, prosseguiu, acrescentando que o homem “procura constantemente a plenitude, só que, às vezes, deixa-se consumir por essa procura”. “E porque é que se deixa consumir? Porque anda em torno de si e a exigir uma autonomia”, lamentou, considerando que “a autonomia é muito boa, mas também pode ser muito má” se “aprisiona” o homem e não o “deixa livre para responder a um compromisso”. “O homem, à força de querer ser autónomo, escava fossos de solidão e escravatura, quando o que mais deseja é ser amado incondicionalmente e para sempre”, acrescentou.

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Neste sentido, a irmã Marta Mendes afirmou que “as caraterísticas do amor são a gratuidade e a perpetuidade”. “Nós andamos à procura disso, os jovens já andam à procura disso. Nós todos, quando entramos no caminho vocacional, o que é que andamos à procura senão de nos sentirmos amados incondicionalmente e para sempre? E isto, quer queiramos, quer não, só se encontra em Deus”, observou aquela mestra de noviças da sua congregação, contando que, por vezes, lhe chega “gente muito insatisfeita”, “que já experimentou quase tudo e que depois lhe falta alguma coisa”. “É este «faltar alguma coisa» que leva à procura de Deus”, considerou, fundamentando com a sua própria experiência, que os jovens “querem coisas definitivas” e com “sabor a verdade” e que “isto leva-os à questão da vocação”. “A vocação começa aqui, quando começamos a sentir que está na hora de trocar a nossa vida medíocre pela verdade, quando decidimos trocar os medos e as dúvidas por docilidade e por confiança”, completou, lamentando o “medo de propor aos jovens uma proposta exigente”. “Os jovens, parece-me, procuram uma vida definitiva. Acho é que não acreditam nela”, declarou.

“Gostamos de ter as coisas todas claras e garantidas, mas o caminho de fé é contrário a isso. Na vocação não temos tudo garantido”, prosseguiu a religiosa, lembrando que “a vida é mesmo fugaz” e considerando que “vale a pena investi-la numa coisa que tem sentido”. “Vale a pena investir em Deus porque não sabemos o dia nem a hora”, concretizou, acrescentando que “Deus não escolhe o forte, mas fortifica aquele que escolhe para qualquer missão”. “Viver em jeito de resposta a Deus significa construir-se em tom de verdade e de liberdade”, sustentou, considerando que a liberdade se alcança através da obediência. “Eu obedeço porque esse é o caminho que me conduz à liberdade”, afirmou acrescentando que “não há configuração com Jesus sem obediência”. “Eu sou muito feliz, mas não entendamos a felicidade como fazer tudo aquilo que me apetece porque isso é estupidez”, concluiu.