O Senhor Henrique é o sineiro da Sé Catedral de Faro. Quando as “vozes” de bronze soam nos ares, poucos cidadãos sabem quem é o executante: um Ancião que maneja o carrilhão nas suas notas e seus toques, no bronze, que vêm dos séculos. Diariamente, o sineiro sobe os 80 degraus, tortuosos e acidentados, que o levam ao cimo da torre do secular templo, repetidamente. É domingo, joguemos o faz de conta, e venha connosco. São onze horas. Preparemo-nos para subir ao cimo da Torre, tendo a simpatia do sineiro com cicerone. Cuidado! Avisa-nos. As escadas são estreitas e pouco seguras! Ruim piso. Acautela-nos o senhor Henrique. O corredor a subir é íngreme, a coberto e a descoberto. Com céu e Mar à vista. As pedras muito gastas, têm séculos. Tratem-nas, com respeito, que são a história da Igreja de Santa Maria.

Chegámos ao cimo. Temos os bofes à boca. E duas recompensas: o sorriso babado do velho sineiro, sempre simpático, em nos conceder a mais bela panorâmica da cidade e, depois, o privilégio em escutarmos as notas em: Lá-3, Fá Sustenido, 3, LÁ-4 E Fá Sustenido 5, que só o senhor Henrique consegue executar. Nos nossos silêncios, cortados pelos ruídos dos aviões que “voam o céu” de Faro.

Mas tracemos o retrato do Sineiro da Sé de Faro: alto e magro. Muito desempenado para a idade. Gastador de palavras, sorriso franco, meio olhar deficiente e, admirador, da sua formosa cidade. Muito orgulhoso da sua missão secundária de apelos sonoros, pelos bronzes, à comunidade religiosa de Faro, de fascínio nativo, pela cidade que se espalha pela Ria, de maré cheia… a partir da Torre sem idade, qual sentinela que vem do berço de Ossónoba, acrescentando, afirma: Como isto é bonito de se ver…

O Sineiro avança para perto dos sinos, pedindo-nos a distância. Reparámos no ritual. Imagem quase lendária. Retira os arames pendurados à parede, e que são sete, afirmando: Oito deveriam ser os sinos que compõem o carrilhão, se um não tivesse caído da altura, Torre a baixo, por terra e quebrado… DI-LO EM LÁSTIMA! Continuemos: Os cabos de arame remendado nas mãos, vão ocupando o seu corpo: o sineiro enfia uma argola pelas ancas, outra ao pescoço. São quatro pulseiras que enfia em cada perna. Nos braços, cada um, o seu arame seguro. A boca vai aguentar um cordão atado a outro arame… Depois, venha o concerto. Em impulsos as “vozes” dos sinos: Santa Maria, S. Vicente, Nossa Senhora da Assunção (o sino maior), Senhora da Conceição, S. Pedro, Santíssimo Sacramento, para terminar na Garrida, se a tanto for possível. Tudo explicado em “aula de música sacra”. Os sons vêm fortes, que fazem esvoaçar um bando de pombos, os donos da Torre. Logo sons graves e aveludados. O ancião gesticula as ancas… a cabeça e membros a um ritmo desgastante. Olha-nos malicioso, num sorriso velhaco, de velho gaiteiro, que os seus movimentos corporais causam, num erotismo natural, pelos movimentos corporais, que os sinos obrigam a praticar: um corpo em movimentos.

E assim, pela harmonia dos bronzes que não ensurdeceram o velho sineiro da Catedral de Faro, criando uma harmonia, como acontecera ao seu congénere da gótica catedral de Notre-Dame de Paris, o Qasimonde de Victor Hugo, pela situação da torre ser livre, de céu aberto, aos sinos no masculino e feminino, em santíssimos nomes, em que os séculos sempre presentes, e continuam nos registos da História e nas cidades… sem idade, as vozes dos bronzes, têm soado em apelos às revoltas, às guerras, à Paz, às alegrias, ao amor, à morte…

Muitos poetas, escritores, historiadores têm dedicado hinos de louvor aos sinos: Schiller, Jean Jaurés, Louis Aragon, Victor Hugo, João de Deus, Alexandre Herculano , Emiliano da Costa, disseram, em uníssono, que: “Os sinos são a voz da Humanidade”.

O senhor Henrique, o generoso sineiro, filho de Faro, adorador da sua cidade… O nobre Sineiro da Sé Catedral de Faro, deu uma badalada à Romana. Aguentou os arames. Os pombos retomaram o habitat da histórica Torre. Ainda o zimbório retinia, e disse, perlado de suor, enquanto retirava o conjunto dos arames e enfiava o boné, simplesmente: “Gosto destes marafados, que me dão vida e fé.”

Nobre sineiro, filho de Faro. Adorador da sua cidade, Homem simples. O homem que faz cantar e chorar os carrilhões da Catedral, quase só por amor, ou pouco mais…

Do livro: “Faro no Verbo Amar” – 1998 = páginas 85/86/