
E eis que na voracidade dos dias, rodeados de muitos temas da atualidade e no meio do turbilhão de greves de enfermeiros e estivadores, olhando ao longe a nuvem de poeira que se levanta com a passagem e a vinda de uma multidão de coletes amarelos, como se a revolução francesa se tivesse reiniciado, chegamos ao Natal.
Apesar de poder ser um hino à obesidade, como canta a mais popular música da quadra da estação de rádio RFM, uma das rádios do Grupo Renascença, é também a lembrança, ainda que por vezes ténue, de que Deus, na sua relação connosco, quer assumir o que há de mais pobre na nossa humanidade.
Nesta aparente concentração mediática que nos leva a um nocivo alheamento da vida que vivemos, passamos ao lado da beleza da descida de Deus à débil materialidade da nossa instantânea e fugaz vida. Ele veio até nós, pequenino e frágil. A criança do presépio, nascida em Belém, delicada e pobre, é igual a nós e quer ser igual a nós. E, sobretudo, quer ser acolhido por cada um, com a doce emoção de quem acolhe efetivamente algo novo e grande nas suas vidas, a doce emoção de quem acolhe um recém-nascido muito amado, um pequeno e novo parente que chega a cada família, a cada coração.
Cristo veio para preencher o vazio que quebrava a nossa relação com Deus. Cristo veio, não para que todos sejamos iguais, mas para que todos tenhamos a liberdade de assumirmos a suprema identidade de Filhos de Deus. Recebe Cristo não quem tem medo do que o prende ou dos preconceitos que o seu mundo lhe impõe; recebe-O quem é livre para a amar a Deus e segui-Lo acima do que pensam os homens, mas sempre de acordo com a vontade de Deus, que nos conduz e enche de amor.
Longe do Natal de Cristo há o natal que nos prende ao consumismo, às prendas, aos enfeites, às “árvores” que nada mais são do que um obstáculo para ver o Outro; há o natal das falsas coroas do Advento que nos isolam dos homens necessitados e, também o natal do falso convívio, da mera e superficial circunstância social, recheado de pais natais comerciais, que promovem o que é vão e perene e não o que é definitivo e eterno.
O Natal de Cristo é o Natal em que conseguimos olhar para o Outro, olhos nos olhos e vermo-nos a nós próprios nesse olhar e, depois, abraçarmo-nos, aceitando as nossas fraquezas e limitações e agradecendo os dons que todos recebemos e nessa união e respeito genuínos fazer crescer o mundo à nossa volta. O Natal de Cristo, o Natal verdadeiro, é o Natal de quem sente que é possível mudar a sua vida e a vida de quem o rodeia, alicerçando nele uma relação de Amor com o Mundo criado, com a Humanidade criada, sabendo que tudo, mundo e humanidade, receberam a presença do Messias. E que Ele é a razão de ser de tudo. Até do Natal!
Paremos um pouco! Deixemos que todos os movimentos meramente humanos avancem. Agradeçamos o caminho que nos conduz a Deus, seguindo Cristo que nasce em nós, na nossa natureza.