Padre Miguel Neto

Desde já devo esclarecer que sou a favor de que existam boas condições de trabalho para todos os sectores e classes profissionais existentes e sou imensamente pela justiça dos rendimentos. Naturalmente, também defendo que quem trabalha o deve fazer com rigor e profissionalismo e no caso de algumas profissões muito específicas, com humanidade e sentido de respeito pelo outro.

Por isso, ao abordar este tema, abordo-o somente numa perspetiva que me parece pouco ortodoxa e peculiar. Falo do financiamento através de crowdfunding da greve dos enfermeiros.
Independentemente dos motivos que levam estes profissionais a fazerem grave, o facto de serem sustentados por um fundo de crowdfunding para se manterem em greve revela, no mínimo, que o sistema está a usar uma atitude e uma ferramenta de angariação de fundos aparentemente benévola para um motivo que poderá ser pecaminoso e obscuro.

E não estou a dizer que o seja, mas a verdade é que, se tal for permitido, nada impede um grupo privado de saúde, daqueles grandes grupos que se têm vindo a afirmar no nosso país, de financiar uma greve dos enfermeiros do Serviço Nacional de Saúde (SNS), pressionando assim os utentes, e quase todos eles em extrema necessidade e com condições económico-financeiras difíceis, a ter de recorrer aos serviços desses mesmos grupos privados para conseguirem ter cuidados de saúde e, mesmo, para sobreviver.

Se esta forma de financiamento grevista for legal, todos os cenários são possíveis de ser criados: nada pode impedir que num futuro, incerto na hora mas previsível de ser concretizado, surja um grupo privado que financie os trabalhadores de outro grupo privado para não trabalhem, por exemplo. E esta situação parece-me absolutamente intolerável!

Se não for esclarecida verdadeiramente a origem dos fundos deste crowdfunding e criado um mecanismo de controle e de limitação deste sistema de financiamento, ainda vamos ter o grupo Sonae a financiar a paralisação grevista dos trabalhadores do grupo Jerónimo Martins; ou o grupo Galp a promover o fecho das gasolineiras da Repsol ou da BP, financiando a grave dos funcionários destas empresas petrolíferas. E se a Prisa, dona do grupo Media Capital (a que pertence a TVI) pagar aos funcionários do grupo Impresa e do grupo RTP para que não trabalhem talvez consigam ser os únicos a ser vistos e ouvidos.

É melhor não dar mais ideias. Mas deixo o alerta, para que se tenha cuidado com o pecado com aparência de bem. Partilha, sim! O crowdfunding pode muito útil para tornar o mundo muito melhor. Mas é necessário ter cuidado com verdadeiro motivo que leva alguém a ser tão generoso em determinadas causas.