
No contexto da apresentação do projeto de investigação sobre “A Biblioteca do Bispo D. Fernando Martins Mascarenhas e o Saque de Faro (1596)”, José António Martins deixou claro que as obras saqueadas do Paço Episcopal “são parte integrante da cultura portuguesa e europeia do século XVI e XVII” e “formataram o pensamento do bispo do Algarve [1594-1616] que impulsionou a diocese segundo as diretrizes do Concílio de Trento”.
Na conferência, que teve lugar no passado dia 16 deste mês no Centro de Interpretação de Vila do Bispo, aquele mestre em História Medieval pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que está há quatro anos a estudar a figura de D. Fernando Martins de Mascarenhas, explicou tratar-se de um conjunto de mais de 60 obras de um total de mais de 200 tomos que pertenciam ao então bispo do Algarve. As cerca de 60 publicações são do século XVI e duas, “muito raras”, do século XV e “têm as suas armas gravadas na capa em cabedal, conjuntamente com outras que dizem que lhe pertenciam”.
O investigador referiu que alguns dos volumes levados para Londres pelo Conde de Essex, Robert Devereux e que em 1602 foram incorporados na Bodleian Library de Oxford, foram oferecidos ao prelado, outros adquiridos por ele e outros “vieram das vigilâncias que os inquisidores faziam, nomeadamente às embarcações que chegavam aos portos do Algarve”. “Se ele as leu ou não, eu penso que sim”, afirmou, acrescentando que o bispo “não as podia ter com ele”, pois estavam referenciadas no Index Librorum Prohibitorum (Índice dos Livros Proibidos).
O historiador acrescentou que a maior parte dos autores destas obras em latim, cuja “importância para a cultura europeia é muito grande”, está ligada à Igreja, como canonistas, mas existem também outros ligados ao Estado, como advogados ou jurisconsultos, “pessoas que percorreram a Europa”.

José António Martins disse que estas obras particulares do bispo o “ajudaram a decidir em certos momentos da vida em áreas completamente diferentes” enquanto “eclesiástico, académico, bispo, biógrafo, inquisidor-geral ou estadista”. “Se lerem alguma coisa entre 1596 e 1628, o nome deste homem está sempre presente”, garantiu o orador, sustentando que o prelado “teve imensos cargos importantíssimos a nível nacional” e “é uma das personalidades mais importantes do século XVI e XVII”. “Ele é considerado a par de dois ou três indivíduos importantíssimos para a Europa. Um deles também é português e seu contemporâneo, o frei Bartolomeu dos Mártires, o outro é o italiano Carlos Borromeu”, complementou.
Acrescentando que o bispo do Algarve “foi um dos expoentes mais importantes nos ditames da organização daquilo que saiu da Contrarreforma”, o investigador explicou tratar-se de “um homem que faz da sua vida um espelho da chamada santidade”. “Tende a imprimir as diretrizes do Concílio de Trento no sentido de chamar a atenção das pessoas para fazerem o bem aos outros. Este homem trabalhou na Diocese do Algarve de uma forma muito interessante. A nossa diocese estava desorganizada e este senhor organizou-a de tal maneira que escreve para os reis, para os papas e recebe cartas desta gente toda”, prosseguiu, acrescentando que o bispo, “muito ligado aos jesuítas e aos dominicanos”, procurou “sensibilizar as câmaras municipais para a construção de conventos e colégios”, dando como exemplo os conventos de Nossa Senhora do Carmo em Tavira, da Trindade em Lagos e dos jesuítas em Portimão e em Faro (Teatro Lethes).
José António Martins acrescentou ainda que no Algarve não houve perseguições aos «cristãos novos» (designação dada aos judeus e muçulmanos convertidos ao Cristianismo) como em Lisboa, Évora ou Coimbra porque o bispo defendia a sua conversão e não a sua condenação. “Não deixando de cumprir o regimento da Inquisição, não teve grande ação na denúncia ou nos relatos para Lisboa das ações dos «cristãos novos» aqui na região. Isso é uma situação muito interessante porque nunca aconteceu antes na história do Algarve durante o período da Inquisição”, destacou, acrescentando que, inclusivamente, o bispo “é acusado de se mostrar com «cristãos novos» na cidade de Faro”. “É um homem de influências e ramificações que tem um poder tão grande que o próprio rei não dá resposta às acusações que lhe são feitas”, prossegue, explicando que, enquanto o prelado foi inquisidor-geral, nunca se abriu um tribunal da Santa Inquisição no Brasil, apesar de ser vontade dos reis (Filipes).
O investigador explicou que o objetivo do projeto, orçamentando em cerca de 3000 euros para viagem e duas a três semanas de estadia em Londres, é “dar a conhecer a importância” da biblioteca saqueada, confirmando de quantos livros se compunha e a importância dos mesmos. “Temos de saber a sua importância e o seu estado de conservação, mais do que saber se devem vir ou não ou para onde devem vir”, afirmou, referindo-se à iniciativa da Associação de Defesa e Promoção do Património Ambiental e Cultural de Faro – “FARO 1540” que aprovou em dezembro de 2013 uma moção a pedir a devolução a Faro da biblioteca do prelado.
José António Martins, que não se quis pronunciar sobre essa intenção, explicou que o objetivo da sua apresentação, que será repetida em Silves, Loulé, Faro, Portimão e Tavira, é sensibilizar as câmaras da área de ação do bispo para apoiarem o projeto. Neste sentido, adiantou já ter encetado contactos com Oxford, tendo obtido a resposta de que a digitalização dos livros “custaria uma fortuna” e que algumas obras estariam em São Petersburgo, na Rússia, numa exposição itinerante. Paulo Neves, que esteve presente, disse que iria apresentar em reunião de câmara, do passado dia 18 deste mês, uma proposta para que houvesse apoio da autarquia. O vereador da Câmara de Faro deixou ainda a ideia de se pedir os livros no âmbito de uma exposição itinerante no Arquivo Distrital de Faro.

Lembrando que se tratam de edições muito limitadas, José António Martins diz que encontrou em Portugal exemplares das obras na Biblioteca Nacional em Lisboa e na Universidade de Coimbra e acrescentou que também há algumas edições à venda em determinados sítios na internet. O investigador explicou que estes livros acompanharam o bispo desde o tempo de aluno da Universidade de Évora. “Naturalmente que quando fosse para Lisboa, como inquisidor, as levaria também. O infortúnio foi terem sido saqueadas no momento em que era bispo do Algarve”, considerou, lembrando que o prelado, “homem muito estudado”, foi também reitor da Universidade de Coimbra, responsável pela reforma daquela academia.
José António Martins considerou injustas as criticas ao bispo por não ter defendido Faro do ataque de Devereux. “Pensava-se que o ataque, que tinha acontecido em Cádis (Espanha), iria para Lagos. Houve informações nesse sentido. Daí que, quando os ingleses entraram em Faro, encontraram a cidade sem ninguém”, contou, explicando que o bispo teria ido defender Lagos. “O sentimento de revolta originou que fossem saqueadas as igrejas, as casas e houve violações. Entraram até uma área que é hoje a de São Brás de Alportel e levaram tudo o que encontraram”, prosseguiu.
D. Fernando Martins Mascarenhas nasceu em 1541 em Montemor-o-Novo e faleceu a 20 de janeiro de 1628, tendo saído do Algarve em 1616 para ser inquisidor-geral.